A história mostra-nos o mais largo horizonte da humanidade, oferece-nos os conteúdos tradicionais que fundamentam a nossa vida, indica-nos os critérios para avaliação do presente, liberta-nos da inconsciente ligação à nossa época e ensina-nos a ver o homem nas suas mais elevadas possibilidades e nas suas realizações imperceptíveis.(...)A experiência do presente compreende-se melhor reflectida no espelho da história. Karl Jaspers

domingo, 5 de abril de 2009

O PAPEL DO NEGRO ESCRAVO NO PROCESSO DE LIBERTAÇÃO



A escravidão no Brasil constituiu-se como uma experiência de longa duração, deixando marcas em diversos aspectos da cultura e da sociedade. No ponto de vista da historiografia conservadora, que tem por hábito a valorização de determinados heróis como sendo os únicos responsáveis por grandes feitos da história, poderemos ver a princesa Izabel como a principal responsável pela libertação dos escravos. No entanto, este ponto de abordagem ignora todo um processo histórico que a conduziu a assinatura da Lei Áurea em 13 de maio de 1888.
Durante os mais de 300 anos de escravidão, muita luta foi travada, muito suor derramado “sob o cabo da enxada”, muito sangue escorrido durante os não raros castigos recebidos no cativeiro. Seria uma pretensão absurda pensar em descrever toda a luta do negro contra a escravidão. Aqui o que se pretende, no entanto, é destacar a importância que os negros tiveram na luta contra a mais cruel das subjugações do ser humano, a perda total de liberdade, sua despersonalização e dessocialização, sua transformação em simples “coisa”, a mercê das vontades de seus senhores. Devemos enaltecer os negros, que em sua luta souberam com coragem e dignidade emergir de um ambiente de degradação onde foram atirados, para nos presentear com suas tradições, arte e cultura.
Desde o primeiro momento da escravidão foram comuns as revoltas nas fazendas, em que grupos de escravos fugiam, formando quilombos, cuja definição para Fernando Martins, em seu livro Poliantéia Santista é: “Lugar de gente alerta ou de prontidão. Perseguida, buscada, ameaçada e, por isso mesmo, em defesa.” Os quilombos eram comunidades onde os integrantes viviam em uma organização comunitária semelhante à existente na África, lá eles podiam praticar sua cultura, falar sua língua e exercer seus rituais religiosos.
Completamente apartados da condição humana eram utilizados como animais de carga, com muitos deveres e nenhum direito. A eles só restava o caminho da resistência e da não aceitação de sua desumana posição. Estes sempre que tiveram oportunidades e meios, demonstraram, sejam nas revoltas ou nos quilombos, qualidades de comando e organização, coragem e capacidade de iniciativa, esses fatores eram extremamente necessários em sua luta pela liberdade. Os negros nunca se submeteram pacificamente a escravidão, de forma geral, sempre reagiram com os instrumentos que possuíam.
São diversas as formas de resistência implementadas pelos escravos ao longo do período escravista: As fugas, sejam individuais ou coletivas, talvez tenham sido a forma mais freqüente de reação, foi de fato tão largamente utilizada que instou a coroa portuguesa a adoção de medidas severas contra elas, chegando ao absurdo da marcação a ferros quentes com a letra “F” aqueles que recorriam a este instrumento de resistência, cabe dizer que, este era o mesmo tipo de marcação utilizada no gado. Grande parte dos escravos fugitivos dirigia-se aos quilombos. Outras formas de resistência foram: os abortos, para que as crianças não fossem submetidas à escravidão; assassinatos de senhores, feitores e capitães do mato. Há registros de que famílias inteiras de senhores de escravos tenham sido assassinadas.
No limite de sua resistência física e moral, o escravo se matava. Além do gesto de libertação, dando ponto final a sua condição de objeto, ele ainda golpeava fundo seu senhor, fazendo com que este amargasse o prejuízo do investimento que fizera para sua compra; asfixia, enforcamento, arma branca, arma de fogo e veneno, são algumas das formas de auto-eliminação. O suicídio foi sem dúvida a mais radical forma de resistência. Também no dia-a-dia do trabalho ocorriam diversas formas de protesto, podemos citar: a morosidade no trabalho, a automutilação, a quebra dos instrumentos de trabalho, além de outros atos nocivos aos interesses senhoriais.
O negro reagiu também contra um “projeto” do colonizador que desejava apagar da memória dos escravos qualquer coisa, mesmo que só um pensamento, que os fizesse retornar a sua terra natal. Para a manutenção deste vínculo o negro se fez valer de algumas artimanhas. Um bom exemplo desta resistência está nas manifestações religiosas, em certos traços da culinária africana, preservados pelos negros, e também na capoeira, um hibridismo, que disfarçava de dança uma forma de luta que muito lhes servia em enfrentamentos contra, principalmente, feitores e capitães do mato.
Muitos historiadores já comprovaram através de documentos a ocorrência de processos jurídicos pelas alforrias, representando estes, mais uma forma de resistência. As várias representações da liberdade nos permitem afirmar que os escravos e libertos dimensionavam suas necessidades de modo muito claro e enfrentaram o problema da escravidão buscando soluções múltiplas para o encontro de sua própria humanidade. Diante das formas de lutas adotadas na resistência a escravidão, aquelas em que, apesar de pouco documentadas, podemos observar maiores detalhes são: as revoltas e os quilombos. A não existência de vasto material a respeito destes episódios históricos deve-se principalmente ao fato de que a documentação era produzida por escravistas, não sendo, portanto de seus interesses um possível registro de derrotas ou mesmo uma demonstração explicita dos horrores da escravidão. Estudos mais recentes buscam o esclarecimento cada vez maior deste passado recente de nossa história.
Das revoltas, a mais conhecida foi a dos Malês, em Salvador. Tendo sido a primeira revolta totalmente organizada por escravos e libertos, merece que nós reflitamos, quem eram eles e quais os principais interesses contidos no plano dos revoltosos. Os malês eram um grupo de escravos, dentre os quais, havia muitos com experiência em combates ocorridos na África, possuíam grande capacidade de organização até mesmo dentro das senzalas, eram islamizados e pretendiam o fim da imposição da religião católica, o assassinato e o confisco de todos os bens de brancos e mulatos, a implementação de uma monarquia islâmica e a escravidão de todos os não muçulmanos. Com rapidez as autoridades prepararam um contra ataque, conseguindo reagir ao ataque aos quartéis em Salvador. Ao tentarem sair da cidade o grupo foi cercado pelas forças oficiais. Cerca de duzentos revoltosos foram levados aos tribunais e suas condenações variaram de pena de morte, trabalhos forçados, degredo e açoites. A partir deste episódio os negros foram proibidos de praticar suas cerimônias religiosas típicas. Esta revolta apesar de rapidamente controlada, serviu para demonstrar as autoridades e as elites coloniais o potencial de contestação e revolta que envolvia a manutenção do sistema escravista. Gerando assim, um grande medo nas elites de que novas revoltas pudessem se espalhar pelo Brasil, transformando o país em uma completa anarquia.
Dentre os quilombos o que mais merece destaque é sem dúvida o de Palmares, não que se possa medir em importância a existência deste e de outros quilombos, mas este foi um “Estado” dentro do Estado, com relações econômicas estáveis, estrutura socioeconômica estabelecida e contatos comerciais com vilas próximas, afinal foram mais de 60 anos de existência. A formação deste e de outros quilombos foi sem dúvida muito numerosa e extremamente importante no processo de reação contra a escravidão; Palmares durante todo este tempo afrontou, de certa maneira, a sociedade colonial, frustrando não menos que vinte e cinco expedições que visavam destruí-lo, agindo os quilombolas com uma tenacidade admirável, e com o vigor e coragem próprio de quem defende a sua “pátria”. Palmares merece destaque pelo tamanho que atingiu, pelo número de escravos e simpatizantes da causa libertadora que abrigou, e que por diversos momentos chegou até mesmo a negociar com o governo e com senhores de terras, em um ato quase que de reconhecimento das autoridades da força que este quilombo possuía.
Outro importante quilombo merecedor de nossa citação, não é um grande quilombo ou um quilombo de grande duração de existência, vale citá-lo, pois que, foi criado em 1882 por iniciativa não de negros fugitivos, mas sim por iniciativa de abolicionistas, como Américo Martins e Xavier Pinheiro. Em uma reunião na casa de Francisco Martins dos Santos, resolveu-se criar um quilombo no bairro do Jabaquara em São Paulo, nos fundos da propriedade de Mathias Costa, onde passaram a dar abrigo a negros fugitivos das fazendas da região. Para manter a ordem, foi escolhido o nome de Quintino de Lacerda como líder. O quilombo do Jabaquara foi extinto em 1886, quatro anos após sua criação, sua extinção coincide com o fim da escravidão em Santos. Somente dois anos depois com a lei Áurea assinada pela Princesa Isabel, foi que todos os escravos foram declarados livres no Brasil.
Ocorreram casos de negros que após serem alforriados, buscaram uma forma de “vida branca”, inclusive, quando possível, adquirindo escravos. Houve no entanto, aqueles que mesmo conseguindo a liberdade, não deixaram de lutar pela libertação de seus companheiros africanos, um caso bastante interessantes é citados no livro, “Ser escravo no Brasil”, de Kátia Mattozo; É a história de um negro que chegou ao Brasil em 1821 no navio Emília, no ano de 1836, já alforriado, dirigia uma empresa com a intenção de repatriar negros à África, e conseguiu graças ao seu empenho reconduzir ao território africano 200 negros, após alugar ao valor de 5.000.000 réis um navio inglês, dentro dos repatriados 60 faziam parte do carregamento do navio Emília. Este caso demonstra a participação do negro no processo de busca da liberdade.
Um fato que nos mostra bem a não aceitação de forma passiva da situação de escravo pode ser observado neste trecho do livro de Hebe Mattos, Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico: ”Durante as lutas de Independência, no Rio de Janeiro e em Salvador, por mais de uma vez a autoridade monárquica pediria aos maiores senhores de escravos que alforriassem alguns cativos para somarem esforços junto às tropas brasileiras. Face a atitude titubeante (quando não francamente contrária à proposição) dos proprietários, muitos escravos se anteciparam e fugiram para se alinhar com as tropas brasileiras”. Eles encontravam assim mais uma forma de resistência a escravidão, pois que ao final das lutas, o governo determinava que lhes fossem concedidas alforrias.
A partir da guerra do Paraguai o movimento abolicionista ganha força, milhares de escravos que retornaram da guerra vitoriosos, muitos até condecorados, correram o risco de voltar à condição de escravos por pressão de seus antigos donos, este era um problema social a ser enfrentado pelo governo do Império.
Não sem lutas e sacrifícios começou a brotar no Brasil uma mentalidade antiescravista, o início deste pensamento foi forjado pelos próprios negros. Nesta fase da história, os quilombos e a propaganda abolicionista passam a ser a principal preocupação do Império, pois a economia brasileira estava centrada no trabalho escravo. Esta preocupação acabou por gerar ações violentas por parte dos senhores de escravos, em resposta ao aumento da violência por parte dos senhores, os negros responderam com o aumento das fugas e a formação de um número cada vez maior de quilombos e com a ocorrência cada vez maior de vinganças sangrentas, que não eram em sua maioria vinganças premeditadas, fruto de índoles malvadas, e sim, reação natural e humana em defesa da própria sobrevivência.
Celso de Almeida.
*Foto: Escravidão

7 comentários:

Anônimo disse...

Me ajudou muito :) ótimo!

Anônimo disse...

isso mee ajuuudou baastantee,muitoo obriigadaa poor essa peesquiisaa !!!
AmOl vooocs!!

Anônimo disse...

amei me ajudou na minha pesquisa da primeira unidade da escola

Anônimo disse...

parabéns pelo texto, didático e de fácil entendimento

Fernando Gralha disse...

Celso meu camarada, seu trabalho está tão bom que acabou virando um sucesso no meu fluxo de trabalhos copiados da internet, uma pena que vendo um trabalho tão bom, o pessoal limite-se a copiá-lo.
Um grande abraço,
Fernando Gralha.

Anônimo disse...

gostei muito de tudo que li sobre a questão do negro e da escravidão no brasil. porém preciso de imagens e informaçoes sobre como a questão étnica e de gênero é vista pelo livro didático. obrigada

Professor Cláudio disse...

Muito esclarecedor e objetivo, mas vale destacar que a escravidão comportava uma gama de negociações entre senhores e escravos que precisa ser realçada. A difusão da coartação, a possibilidade de acumulação de um pecúlio pelos cativos, a ausência de senzalas em inúmeras propriedades, a falsa imagem do escravo desarmado e preso a grilhões, etc, são algumas imagens que distorcem as interpretações e que foram legadas pela propaganda republicana. O mesmo se repete em relação ao mítico quilombo: espaço de liberdade ou reprodução da vida africana? A escravidão pré-existia aos portugueses e fazia parte do modo de vida - mesmo sendo "outra" escravidão. E os quilombos na periferia urbana? Se ameaçadores, por que sobreviveram tanto tempo?
Alguém imagina um escravo EMPRESTANDO dinheiro ao seu senhor? Pois é...existe registro!
Um abraço.

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