A história mostra-nos o mais largo horizonte da humanidade, oferece-nos os conteúdos tradicionais que fundamentam a nossa vida, indica-nos os critérios para avaliação do presente, liberta-nos da inconsciente ligação à nossa época e ensina-nos a ver o homem nas suas mais elevadas possibilidades e nas suas realizações imperceptíveis.(...)A experiência do presente compreende-se melhor reflectida no espelho da história. Karl Jaspers

quinta-feira, 15 de maio de 2008

O Tráfico de Escravos



Na legislação portuguesa a escravidão parece ter sido estimulada desde a autorização de resgate dos “negros da Guiné”, feita pelo rei Afonso V em 1448, que concedia dízima do comércio de escravos ao infante D Henrique, como governador das descobertas da Guiné.
Por menos que queiramos, a escravidão faz parte da nossa história. Mesmo que se tente esconder ou esquecer, não se pode ignorar sua existência. Conhecer o tráfico de escravos no Brasil é entender um pouco a importante contribuição dos africanos na formação da cultura brasileira. Cabe ressaltar que hoje a palavra “tráfico” está intimamente ligada ao crime e a ilegalidade, no entanto, no que se refere ao tráfico de escravos africanos, não houve ilegalidade, pois que era um comércio, organizado, patrocinado, em alguns casos pelos governos, realizado por mercadores que enriqueceram com o lucrativo “comércio de almas”, também geraram grandes lucros aos governos através do pagamento de impostos. A própria igreja apoiou a escravidão, e o papado concedeu a portugueses e espanhóis o direito de; atacar e apreender pagãos e sarracenos, tomar seus bens e os reduzir a escravidão perpétua, através da bula papal “Dum diversas” de 1452. O apoio legal da escravidão estava no direito romano, que se manteve durante a idade média.


O início da escravidão na colônia

Antes da entrada dos escravos oriundos da África, o Brasil já se utilizava da mão-de-obra escrava. Foram os índios os primeiros a passar pelo processo da escravidão, e que, por um bom tempo, movimentaram a economia da colônia através de sua força de trabalho. Poucos autores dedicaram-se a escrever sobre a escravidão indígena, no entanto ela aconteceu, e foi bem maior que se imaginava. Segundo Sheila de Castro; “foi justamente do índio que se serviu o colono para instalar unidades agrícolas açucareiras, mesmo que com a interferência constante e conflituosa dos jesuítas”. Documentos indicam que o contato inicial com os índios foi amistoso, sofrendo posterior revés, quando os portugueses iniciaram um amplo processo de escravidão dos indígenas, a quem os portugueses viam como mão-de-obra para o trabalho agrícola. Os chamados “negros da terra” foram amplamente utilizados nas produções do nordeste açucareiro, e somente no século XVII a quantidade de escravos africanos superou o número de índios nas atividades agrícolas.
Depois da apreensão dos índios localizados ao longo da Costa Brasileira, os colonizadores precisaram embrenhar-se um pouco mais continente adentro a fim de proceder a capturara, depararam-se então com índios bem mais hostis. Em um pequeno trecho de uma carta enviada ao reino podemos ter a noção do pânico dos colonos em relação aos índios: “terra de criação de todas as coisas deste mundo, não há em toda a terra como esta, mas o gentio dela é demônio”.
Talvez o que tenha provocado a dúvida se ocorreu ou não uma ampla escravidão indígena, foi o fato da legislação portuguesa ter sido extremamente confusa neste aspecto, pois, teoricamente índios não poderiam ser escravizados de “maneira irrestrita”. Muito destas restrições foram resultado das lutas dos jesuítas, que achavam que a eles cabia o papel da salvação de suas almas. A coroa portuguesa ora proibia, ora liberava, com reservas a escravidão indígena.

Dificuldades para o estabelecimento do tráfico indígena

Para que exista um comércio regular existe a necessidade de que todo um ciclo comercial se feche, é necessário que exista produto, mercadores, compradores, e reposição de mercadorias de forma regular, que efetivamente nunca conseguiu se fechar no que diz respeito à escravidão indígena. Devido a imensidão do território colonial, seria perfeitamente possível que se estabelecesse um comércio de índios entre as capitanias, se tal comércio se estabelecesse, teria se amenizado o problema da fuga do cativeiro, pois que estaria se desassociando o indígena de sua região de origem, o que certamente não terminaria com a fuga, mas a abrandaria, sobre isto, o naturalista luso-brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira pensava que: “se os pretos não fogem para a África, donde vêm, não é por falta de vontade, mas pela falta de meios para atravessarem tantos e distantes mares”. Esta tese defenderia que os descimentos fossem realizados para distantes capitanias, no entanto, alguns fatores a fazem cair por terra; irregularidades no transporte marítimo de costeiro, era muito mais difícil a navegação a vela de norte-sul do que de leste-oeste, em termos práticos era muito mais fácil atravessar o atlântico e comprar escravos na África, que transportar índios do nordeste ao sudeste ou sul. Outro fator complicador foi a proibição a partir de 1549 do comércio entre as capitanias. A própria navegação de cabotagem proibida até então, só foi liberada em 1766, data em que o tráfico negreiro já estava fortemente estabelecido. Outro fator primordial é que os grandes mercadores que poderiam realizar este comércio, já se apresentaram como vendedores de escravos africanos, o que por si só, já fecha questão no assunto, comércio indígena. Além de tudo, o tráfico indígena esbarrava em fatores fundamentais da condição da colônia do Brasil. O grande capital mercantil estava investindo no negócio de escravos africanos, a rede fiscal da Coroa estava ligada a este tráfico de escravos, a política de exploração, em que a metrópole não dava grande importância ao acumulo de capitais na colônia, apesar do mesmo acontecer, e também ao fator resistência da igreja, que dava prioridade a evangelização dos índios.

Entrada da escravidão africana na colônia

Vários fatores respaldaram a substituição, que não foi total,[1] da mão-de-obra indígena pela Africana. Cabe ressaltar que a principal delas foi a prática mercantilista e a economia baseada na “plantation”, tipo de sistema agrícola baseado em uma monocultura de exportação mediante a utilização de latifúndios e mão-de-obra escrava, que predominava nas colonizações do período. O tráfico de escravos enquadrava-se na lógica comercial adotada, ou seja, o comércio gerava para metrópole mais lucro, devido aos encargos que lhe eram atribuídos, o que não ocorria no caso dos indígenas. Além disso, outro fator fundamental a utilização de africanos na colônia brasileira foi o conhecimento dos mesmos sobre a escravidão, pois esta já era uma prática difundida na sua cultura. O que tornava de mais fácil entendimento o “mecanismo” da escravidão, em oposição ao indígena que não era capaz de compreender os mecanismos envolvidos no processo escravista. O comércio interno de escravos acontecia naturalmente entre as sociedades africanas, o Europeu apenas aproveitou-se de uma estrutura já estabilizada.
Além disto, na escravidão indígena havia uma alta taxa de mortalidade, por vários motivos, além de que, por conhecer o território, os índios embrenhavam-se cada vez mais em direção aos sertões, dificultando cada vez mais sua captura e aprisionamento, fazendo rarear a mão-de-obra e dificultando sua reposição, tão necessária ao andamento dos projetos agrícolas, fazendo crescer a necessidade de uma solução. E o caminho apontado foi a chamada “solução africana”. Segundo Caio Prado: “O trabalho indígena seria pouco lucrativo, se considerada a baixa resistência a doenças e sua aversão ao trabalho agrícola”. Deve-se ressaltar que nas comunidades indígenas no Brasil, o trabalho na agricultura era realizado pelas mulheres. Já Celso Furtado, destaca que o índio foi a mão-de-obra essencial na montagem de toda a economia açucareira quinhentista, este destaca ainda, que a introdução da mão-de-obra escrava africana deveu-se a baixa capacidade de reposição de escravos na lavoura.
Não devemos abrir mão ou considerar equivocados os motivos expostos por estes historiadores, no entanto, é Fernando Novais na década de 1970 que talvez nos aponte o mais forte motivo para a introdução da escravidão africana, Novais destaca que a opção pelos africanos foi motivada pelo sistema mercantilista da colonização, especialmente pelos lucros advindos do tráfico atlântico que segundo Novais foi “alavanca fundamental da acumulação primitiva de capital”. O número de escravos introduzidos no Brasil foi extremamente alto, contribuindo para alicerçar uma economia baseada no trabalho escravo.

O comércio atlântico

O europeu raramente embrenhou-se em território africano para realizar a captura de escravos, esta tarefa era feita pelo próprio povo africano, pois a escravidão já fazia parte da cultura da África. Para se ter idéia clara de que a escravidão estava solidificada entre os africanos, podemos realizar uma pequena comparação; Na Europa onde o que determinava a riqueza de um homem era a posse da terra, as leis de posse de terra eram extremamente desenvolvidas e detalhadas, no que tange a África as leis mais detalhadas e desenvolvidas eram as leis que regiam a posse de escravos, pois, este era o fator determinante de poder e riqueza de um homem na África. Já que na África não existia a terra como propriedade, aquilo que determinava a riqueza de um homem era exatamente o poder que ele tinha de cultivar maior extensão, e para isto era necessário que ele detivesse a primazia sobre outro fator de produção, no caso, da mão de obra, representado pela quantidade de escravos que possuía. O comércio dos negros era realizado através de feitorias espalhadas pela costa da África, onde comerciantes africanos concentravam suas “peças”, e para onde comerciantes escravistas se dirigiam para realizar os negócios, que era basicamente feito através de troca por mercadorias, tais como: tecidos, aguardente, fumo. Não eram os compradores que determinavam de que regiões ou grupos étnicos seriam os escravos comercializados, esta oferta era determinada pelas condições internas da África. A oferta de escravos para o comércio se dava de duas formas; pelo negro já escravizado, ou pelo meio mais comum, através de guerras realizadas para captura. O tráfico atlântico não foi exclusividade dos portugueses ou espanhóis; ingleses, franceses, holandeses entre outros participaram deste lucrativo negócio.
Os primeiros negros chegaram ao Brasil em 1530, com a expedição de Martin Afonso de Souza, vindos da Guiné. Não podemos considerar isto como o início da escravidão africana no Brasil, isto só ocorreria décadas depois.

A chegada ao Brasil

Os portos que receberam maior número de escravos no Brasil foram: Salvador, Rio de Janeiro, Recife, Campos e Santos; desses portos os escravos eram transportados para os mais diversos locais do Brasil. Outras cidades também recebiam escravos vindos diretamente da África, porém, em número bem menor. A proporção de desembarque de escravos variou ao longo dos mais de 300 anos de escravidão, dependendo da principal atividade econômica exercida pela região, servida pelo porto em questão. Durante a fase de maior produção de cana de açúcar no Nordeste, os portos de Recife e Salvador recebiam o maior número de escravos, mas, durante a fase áurea da mineração e do café, coube ao Rio de Janeiro tornar-se o maior porto receptor de escravos. A venda destes escravos era feita em praça pública, através de leilões, no entanto, o comércio de negros não se limitava á venda das “peças” recém chegadas da África. Transações comerciais com escravos eram comuns, como um produto qualquer comerciável. As relações comerciais internas envolvendo escravos acentuavam-se em momentos específicos do processo escravocrata. Com o declínio da produção açucareira no nordeste muitos produtores venderam parte de seu plantel para o sudeste, principalmente para Rio de Janeiro e São Paulo, áreas emergentes na produção de café.

O fim do tráfico e as conseqüências para o Brasil

O ano de 1850 marcou o fim do trafico africano, desta vez com medidas restritivas enérgicas por parte das autoridades brasileiras, embora até 1857 tenha-se registrado a entrada de africanos no Brasil. A partir daí não resta dúvida de que o tráfico interno foi de suma importância para a sobrevida da escravidão, existem dados que dão conta de que 400 mil escravos foram negociados em 35 anos de tráfico inter e intraprovinciais. Nesta modalidade eram negociados basicamente “crioulos” e assim como no tráfico atlântico, predominância de homens adultos, sendo isto fator decisivo no fim da escravidão.
A escravidão no Brasil era sustentada pelo tráfico, não ao contrário, como se possa imaginar, prova disto é que com a crescente pressão inglesa que desejava ver aumentado seu mercado consumidor, o Brasil finalmente estabelece o fim do mercado atlântico de escravos, a partir daí inicia-se a lenta queda do sistema escravagista no Brasil. O encerramento do tráfico com a África não colocou ponto final na escravidão, mais deu inicio a seu fim. Durante algum tempo, foi realizado na colônia um comércio interno entre as diversas regiões, com o deslocamento da mão-de-obra escrava para os locais onde o emprego destes era mais necessário, estima-se que neste período foram comercializados, neste tráfico interno, cerca de 400 mil escravos. No entanto, a falta de reposição dos negros vindos da África encareceu o preço do escravo. Nossa escravidão que jamais possuiu um crescimento interno que pudesse repor as necessidades escravistas, como, aliás, ocorria nas colônias inglesas da América do Norte, sempre foi alimentada por um crescimento da mão-de-obra vinda de fora com a constante chegada dos africanos nos portos brasileiros. O aumento do comércio interno, entre regiões, muitas vezes feitos com negros já nascidos no Brasil, e com famílias já formadas, agravou o conflito e a revolta dos negros, que eram separados de suas famílias, dando origem a revoltas, fugas, formação de quilombos, atentados contra senhores e feitores e até mesmo suicídios. Além disso, o encarecimento do escravo provocou o desaparecimento do pequeno proprietário rural e contribuiu para a “deslegitimação da propriedade”.
Portanto, mesmo com a manutenção do tráfico interno, a manutenção da escravidão no Brasil tornou-se muito complicada. Os indicadores mostram que gradativamente houve uma redução da mão de obra escrava. Havia pressões dos grupos abolicionistas, as manifestações dos negros, o surgimento de uma nova possibilidade, o trabalho do imigrante, tornou a abolição de 13 de maio de 1888 inevitável. Foi apenas o ato final de um processo que já se arrastava em lenta agonia.
Celso de Almeida
*Foto: Mapa do tráfico

1 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns! Seu texto está excelente. Geralmente eu prefiro os livros à textos da internet. Entretanto, seu texto não deixa nada a desejar.
Valeu!

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