A história mostra-nos o mais largo horizonte da humanidade, oferece-nos os conteúdos tradicionais que fundamentam a nossa vida, indica-nos os critérios para avaliação do presente, liberta-nos da inconsciente ligação à nossa época e ensina-nos a ver o homem nas suas mais elevadas possibilidades e nas suas realizações imperceptíveis.(...)A experiência do presente compreende-se melhor reflectida no espelho da história. Karl Jaspers

sábado, 5 de abril de 2008

O TRABALHISMO



Logo após tomar posse no Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, Alexandre Marcondes Filho iniciou uma de suas políticas mais significativas, o novo ministro passou a ocupar, todas às quintas-feiras, durante dez minutos os microfones do programa “Hora do Brasil”, e todas às sextas-feiras, o jornal oficial do Estado Novo – A Manhã – publicava o texto, que assim podia ser mais bem fixado pelo público. A partir de 1944 Marcondes passou a falar diariamente na Rádio Mauá, não por acaso chamada de Rádio dos Trabalhadores.
Era a primeira vez no Brasil que uma autoridade do porte de um ministro de Estado se dirigia a tão grande público, usando sistematicamente, como instrumento divulgador da mensagem, o rádio. As palestras se dirigiam a um público específico e em grande parte analfabeto, e seu conteúdo, tinha um eixo fundamental: a legislação social trabalhista do Estado Novo. O programa “Falando aos Trabalhadores Brasileiros” resume em seu título a intenção do ministro. Devido às dimensões do território brasileiro e das dificuldades de comunicação, o rádio fora o meio considerado mais conveniente para a realização desta tarefa de esclarecimento. O conteúdo das palestras abrangeria predominante o novo direito social, ainda desconhecido do povo trabalhador, seu principal beneficiário.
O impacto e a penetração política de tais palestras são difíceis de avaliar em seus resultados efetivos, no campo político da doutrinação funcionava como detonadora e articuladora de toda uma política ministerial e de governo. O ministério ao longo destes anos não cessara de receber consultas, comentários, referências e sugestões de um público que incluía trabalhadores e muitos outros setores, desta forma fica ao menos provado que a iniciativa radiofônica, ao lado de outras, contribuíra decisivamente para tornar a legislação social um patrimônio do trabalhador e de toda a comunidade nacional. O programa radiofônico só deixou de ir ao ar no momento que a situação política nacional mudou radicalmente. O conjunto de palestras de Marcondes Filho, ao longo de três anos e meio, constitui uma espécie de diário, não só da política trabalhista como do próprio momento nacional.
As palestras envolviam inúmeras questões específicas na área da legislação social mas, mesmo com uma enorme variedade de temas, eram recorrentes em certas estruturas básicas. Seu enredo, modificava-se, mas a história que contavam e o desenho de seus personagens centrais eram basicamente os mesmos. O discurso tinha um argumento central que ia sendo retomado seguidamente com o acréscimo de novas informações, que tinham como objetivo ilustrar o que se queria fixar. Os assuntos eram explorados lentamente, e podiam ser retomados após algum tempo. A propaganda devia alcançar seu público justamente na medida em que lhe demonstrava seu valor, sua capacidade e também sua proximidade com o emissor da mensagem. Marcondes inúmeras vezes não se apresentava como ministro, e sim, como “proletário intelectual”.

A criação do tempo festivo

É importante ressaltar que foi no Estado Novo que teve início uma série de comemorações oficiais que procuravam destacar certas datas, envolvendo a população em um calendário festivo, com grande destaque para as comemorações do 1º de maio. Quando da comemoração do primeiro dia do trabalhador pelo Estado Novo em 1938, o presidente anunciou o regulamento da lei do salário mínimo e assumiu o compromisso de presentear o trabalhador nesta data com uma realização na área social, neste mesmo ano em 10 de novembro, dia de aniversário do Estado Novo, na inauguração do prédio do Ministério do Trabalho, Industria e Comércio em seu discurso o presidente Vargas usou pela primeira vez o termo “Trabalhadores do Brasil”, que se transformaria em seu bordão ao encarnar seu papel de líder das massas operárias. A partir da promessa feita pelo presidente o primeiro de maio passou a ser aguardado com ansiedade pelos trabalhadores para que tivessem então conhecimento de mais uma iniciativa do governo em sua política no direito social.
Em três datas- o aniversário do presidente, o dia do trabalhador e o aniversário do Estado Novo – eram ocasiões chave para comunicação de Vargas com a massa operária, cabe destacar é que estas datas se integravam, ao mesmo tempo precederam e redimensionaram a intenção básica da política doutrinária do Ministério do Trabalho após o ano de 1942. Elas estruturaram uma aproximação significativa e personalizada entre autoridades e o público trabalhador.

O povo e o presidente

Praticamente em todas as palestras o nome de Vargas era citado de forma contundente, é profundamente significativa à participação de Marcondes Filho na construção de uma certa imagem de Vargas – do mito Vargas, cabendo lembrar que este mito foi construído em um espaço de tempo não muito longo, que coincide com os anos do Estado Novo, pois na revolução de 1930, Vargas era apenas mais um entre muitos que fizeram a revolução, não era particularmente reconhecido, condição esta que se alterou com a chefia do Governo Provisório. Foi a partir do Estado Novo que sua figura começou a ser projetada como a de um grande e indiscutível líder nacional. Sob o comando do DIP foi articulada uma das mais bem sucedidas campanhas de propagandas políticas de nosso país, tendo como personagem central o presidente Getúlio Vargas. Festividades, cartazes, fotografias, artigos, livros, concursos escolares, e toda uma enorme gama de iniciativas foi empreendida em louvor do chefe do Estado Novo, seu nome e sua imagem passaram a partir daí a encarnar o regime e todas as suas realizações.
A história trabalhista em nosso país se divide em antes e depois de 1930, depois de 1930 todas as providências tomadas envolvendo soluções nas questões sociais eram atribuídas ao próprio presidente Vargas, era dele que todas as soluções emanavam, era o inspirador e o executor de toda a política do direito social, nas mensagens dirigidas aos trabalhadores colocava-se sempre Vargas como quem criou, determinou, estabeleceu, assinou, mandou executar ou cuidar para que...Assim, nada se fazia nesta área sem o prévio e direto conhecimento e aprovação do presidente.
De todas as qualidades que caracterizavam o presidente havia uma sempre destacada e que segundo destacava Marcondes em suas falas a nação, que distinguia Vargas como estadista; sua capacidade de antever o curso da história, a clarividência, que fazia com que suas iniciativas políticas tivessem um verdadeiro caráter profético, que poderia ser constatado com o discurso de Vargas ainda como candidato em 1929, pois já neste discurso estaria embutido todo um programa de 15 anos de governo e toda a percepção política da época. A leitura que se fazia de toda obra governamental era a de uma obra antecipatória só explicável pela clarividência de Vargas, qualidade esta que repousava em dois fatores fundamentais: a inteligência superior do presidente e sua extrema sensibilidade, que o levava a uma comunicação franca e direta com o homem do povo, indo então de encontro com a sabedoria das multidões. A Vargas atribui-se sempre o equilíbrio perfeito entre a razão e a emoção, que fazia com que as leis de Vargas fossem ditadas pela sabedoria, embora nascessem do coração. O maior exemplo desta qualidade excepcional era o próprio processo de construção de nosso direito social. Marcondes Filho em suas falas, distinguia dois processos básicos para o estabelecimento do direito social no mundo: ou a melhoria das classes trabalhadoras “provém das cruentas reivindicações populares para fazer progredir o Estado, ou provém da sabedoria do Estado e da clarividência das leis, para fazer progredir o povo”. No Brasil, coube ao Estado antecipar-se e elaborar a legislação, antes mesmo que o espírito associativo dos trabalhadores organizasse o sindicato. O sindicato aqui foi conseqüência e não causa do processo que estabeleceu os direitos trabalhistas. O trabalhador obteve por outorga do poder público, sem lutas, os benefícios que tanto custaram a outros povos. No Brasil cabia ao Estado “fazer progredir o povo”, esclarecendo os trabalhadores e criando neles o espírito associativo que ainda não possuíam. Por isso estes precisam ser educados e mesmo forçados a receber os benefícios sociais. Nas palestras de Marcondes Filho os trabalhadores seriam sempre citados como dotados de ânimo, interesse e capacidade. Suas palestras tinham como pano de fundo recorrente a glorificação do homem brasileiro, da “raça brasileira” em sua força e energia, conquistando a terra bruta e primitiva ou construindo à grandeza industrial do Brasil. Em seus discursos realizava uma autêntica inversão de valores, realçava a contribuição do trabalhador nacional em nítida oposição ao estrangeiro, neste particular, destacava-se a presença do trabalhador negro, que marcava positivamente a raça brasileira e deveria ser respeitado e glorificado, sobretudo diante do nosso terrível passado escravista, o estado Novo assumia uma postura de combate aos preconceitos e sepultava os ideais de eugenia e branqueamento. Tratava-se neste momento de valorizar o trabalho manual, o ato de trabalhar com as próprias mãos, como elemento responsável pela mobilidade e ascensão social, tanto em termos econômicos, quanto políticos. Ser trabalhador era ganhar o atributo da honestidade, que neutralizava em termos de honra o estigma da pobreza. Pobre, mas trabalhador, isto é, um cidadão digno dentro do novo Estado nacional. A carteira profissional, criação dos pós-30, traduzia o tipo de relação entre cidadão e Estado que se desejava construir.
A construção da figura de Vargas, a outorga das politicas sociais e a valorização da posição ocupada pelos trabalhadores brasileiros se completavam em um enredo harmonioso que estruturava a comunicação entre o povo e o presidente. Em um discurso em 1942 Marcondes sintetizou o tipo de visão que se buscava fixar em torno do “Homem Vargas”: o grande, o maior responsável pela forma como se estabeleceu o direito social no Brasil, em outras nações o processo fora sangrento pela ausência de qualidades populares dos dirigentes, incapazes de sentir as dores e sacrifícios dos trabalhadores.
A partir de 1942 a preocupação central dos pronunciamentos era mobilizar a massa das forças trabalhistas brasileiras, entendendo-se que esta mobilização econômica era o fundamento da mobilização militar. Vargas se dirigia aos trabalhadores como “soldados da produção”, solicitando de todos o esforço máximo para o desencadeamento da “batalha da produção”. Neste contexto, é fundamental ressaltar que todo este esforço de propaganda dirigida especialmente aos trabalhadores era feito ao mesmo tempo à decretação de uma série de leis que, suspendia a vigência de diversos direitos trabalhistas. Em agosto de 1942 o governo decretou a jornada de dez horas de trabalho, sob o argumento do “estado de guerra”,suspendeu o direito a férias em todas ai industrias consideradas essenciais à segurança nacional. Em dezembro um decreto impedia a mobilidade do trabalho nas chamadas “indústrias de guerra” o que transformava literalmente seus empregados em “desertores” em casos de falta e desistência do emprego.
Os trabalhadores portanto viviam um momento político muito especial. De um lado, eram forçados a trabalhar em condições em que não tinham vigência vários direitos sociais já garantidos por lei, e de outro, eram conclamados a assumir um papel central na “batalha da produção”, desencadeada justamente pelo homem cujo maior título era ter outorgado estes direitos sociais. O programa “falando aos trabalhadores brasileiros” atuou neste exato período de tempo (1942 à 1945), o que redimensiona a importância de uma campanha doutrinária intensiva e ilumina o teor das advertências do ministro, no que concerne aos inimigos do projeto governamental. Nas palavras de Marcondes Filho dirigidas a Nação, durante doze anos Vargas tudo dera aos trabalhadores pela força da sua vontade. Agora cabia a eles retribuir o bem que lhes fora outorgado, mostrando que estavam a altura dos benefícios recebidos.

Dar...receber...retribuir – a política brasileira fora do mercado

A proposta política dos anos quarenta estruturava-se basicamente em torno da construção de uma relação entre povo e o Estado/Nação, encarnado na figura do Presidente. A história da relação povo/Presidente era fundamentalmente a história da resolução da questão social no Brasil, era a historia de um Presidente que legislou sobre o problema síntese da nacionalidade, o problema social. Importante ressaltar a forma como essa questão foi resolvida, o que acabava por determinar a forma pela qual esta relação povo/Presidente se efetuava. O ponto primordial desta construção convencionou-se chamar de “ideologia da outorga”, ou seja, a legislação social brasileira, instrumento mediador por excelência das relações entre governantes e governados, foi outorgada pela personalidade clarividente do chefe do Estado ao seu povo. A relação fundadora do Estado era uma relação de doação, uma relação de dar e receber dádivas/presentes/benifícios.
O presidente Vargas por sua “clarividência”, antecipava-se voluntariamente às demandas sociais e outorgava a legislação. A outorga impede o uso da força, necessária quando a conquista precisa ser empreendida. Ao doar generosamente, o Presidente, estava igualmente cumprindo um dever do Estado, na realidade o dever primordial, que era o de garantir a justiça social.
O ato de doar deve ser entendido interessadamente, como um dever, ele igualmente implica uma outra obrigação; a de receber. Assim receber benefícios é um direito, mas é igualmente um dever. Por este motivo, o Estado precisava não só doar, como criar a obrigação de receber. A força da coisa dada está em produzir em quem recebe a consciência de uma obrigação de retribuir como um dever político de natureza ética. A dinâmica proposta na relação entre povo e Presidente era a de um contrato que estabilizava a nação e sustentava o poder do Estado.
Diante disto o procedimento político assume a feição de um fenômeno social “total”, isto é, econômico, jurídico e moral. A força da relação dar-receber-retribuir está em conceituar a prática política como uma espécie de prática religiosa, isto é, como um contrato de adesão direta e total com a autoridade.
Ser cidadão, era pertencer a uma totalidade econômica ( trabalhar = produzir riquezas); jurídica (possuir a carteira de trabalho) e moral (compreender o trabalho como um dever/direito), cidadania era pertencimento. Nesta dinâmica, o povo era o princípio e o resultado da ação do legislador. Ou seja, o Estado brasileiro era produto tanto de uma vontade nacional inconsciente (o povo), quanto de uma vontade racional consciente (o legislador). O Presidente era provedor de seu povo, pois tinha a virtude de entendê-lo e, em o fazendo, de amá-lo. Portanto, para doar era preciso possuir muitas propriedades/qualidades. Era esta condição que não só permitia, mas igualmente obrigava à doação. A virtude e a fortuna estavam na base da outorga como procedimento contratual.
Receber era um ato virtuoso, pois implicava a idéia de aceitar o vínculo, e como tal, de não faltar com a retribuição ao longo do tempo. Retribuir não é pagar dívida; é reconhecer uma obrigação que extrapola a dimensão utilitária. Era desejo do Presidente que seu povo progredisse socialmente. A idéia de progresso estava vinculada às qualidades do legislador, tornando-se uma doação da autoridade clarividente uma revelação do povo naturalmente bom. Este, ao receber, reconhecia a autoridade, ou seja, obrigava-se moralmente perante ela. Aquele que doava vivia através do tempo na memória dos que recebiam, da mesma forma, aquele que tinha fortuna e não doava, morria verdadeiramente: não era reconhecido, não era identificado nem amado.
O contrato de fundação do Estado estabelecia, uma relação pessoal, entre o chefe da nação e todo o povo trabalhador. Quando neste sentido, se refere a “povo” não se fala de toda a população indistintivamente, neste caso “povo” era a massa trabalhadora que estava no mercado formal, os que estavam solidários entre si e com a autoridade. E a marca desta solidariedade era dada por um princípio jurídico-econômico e também moral. O comprometimento pelo trabalho significava ganhar identidade política, no entanto quem estivesse fora do mercado não estaria permanentemente fora dos benefícios governamentais, bastava conseguir “trabalhar” para fazer jus a todas as vantagens sociais dadas pelo governo.
Quando se fala em outorga diz-se de um tipo especial de legislação. Eram leis sociais, particularmente as chamadas leis do trabalho, o que tem um significado duplo, não só pelo sentido da lei, como pelo sentido do universo que ela procurava regular. Legislar sobre o trabalho significava regular o tempo útil e pós-útil do cidadão. Definir que, para aqueles que trabalhavam, o pagamento do salário era insuficiente. Isto porque eles davam vida aa coletividade, e tanto seus patrões como o próprio Estado devia-lhes, além da paga material, uma certa situação de segurança e bem-estar durante o período em que eram produtivos, e mais ainda, quando não o eram mais, por velhice ou morte.
A legislação não era uma caridade, ela era função da solidariedade criada e devida pela autoridade. Mais este sentimento não vinha contrariar a noção da necessidade, do dever de trabalho, nem tampouco a idéia de que cada um devia lutar por seus interesses, por seu “lugar econômico”. O povo tinha o direito de receber, e portanto o dever de retribuir. Ao contrário, ele não tinha o direito de não receber, pois isto significava não ter o dever de retribuir. Daí porque não retribuir- não pertencer, não trabalhar_ era crime. Era o reverso da cidadania. Era estar fora, recusando o vínculo, a aliança.
A invenção do trabalhismo como ideologia da outorga permite justamente refletir sobre a dimensão simbólica que alimentava e dava feição especifica a estas relações políticas, a este pacto social. Esta dimensão põe em foco singular a dinâmica entre repressão e mobilização exercitada neste período, da mesma forma que permite compreender melhor a longevidade das noções construídas pelo discurso político estado-novista.
O grau de eficiência e de permanência de um projeto político é uma questão das mais complexas, o estado brasileiro elaborou e gerenciou neste período de nossa história deixaram marcas que, no mínimo, nos esclarecem sobre o papel central que ainda desempenham no que se pode identificar como uma cultura política brasileira. Combinar uma análise científica moderna e sofisticada com um articulado discurso de apelo popular não é tarefa desprezível.
O grande “segredo” está na lógica que articulava este discurso. Ele releu o passado das lutas dos trabalhadores sem ao menos mencioná-lo, estruturando-se a partir de uma ética do trabalho e da valorização da figura do trabalhador nacional.

Celso de Almeida.

*Foto: Getúlio Vargas

1 comentários:

Anônimo disse...
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